1. INTRODUÇÃO
Tudo no universo é afetado por um processo permanente de mudanças. Assim, e talvez sob a influência da idéia de proteção ao meio ambiente, o lixo deixou de ser aquilo que se descarta definitivamente, passando a ser em grande parte reciclado. E a reciclagem do lixo aos poucos vem se tornando uma atividade economicamente significativa que, por isto mesmo, vem chamando a atenção dos que lidam com a tributação.
É bem maior do que se imagina, especialmente nos grandes centros urbanos, a quantidade de lixo que pode ser reciclado, e já é significativa a quantidade de pessoas que se dedicam à coleta seletiva e à reciclagem desse lixo como atividade profissional. Atividade que se desenvolve mais a cada dia, sendo oportuno, portanto, o questionamento que se deve fazer em torno da atitude do Estado em face da mesma, como atividade econômica que evidencia oportunidade de arrecadação mas, ao mesmo tempo, merece estímulos enquanto fator de proteção do meio ambiente. E ainda porque envolve questão social muito séria, posto que a atividade de catar o lixo é desenvolvida em grande parte por moradores de rua, pessoas inteiramente desamparadas que vivem exclusivamente do pequeno rendimento nela obtido.
Começaremos por delimitar a idéia do que se deve entender por reciclagem de lixo, para em seguida apontarmos as principais vantagens que dessa atividade decorrem para a preservação do meio ambiente e a final examinarmos algumas das questões que a reciclagem do lixo pode suscitar no que diz respeito à tributação.
2. RECICLAGEM DE LIXO
2.1. O que devemos entender por reciclagem
Reciclar é verbo sem significação especificamente jurídica. Ao menos não é registrado nos dicionários jurídicos mais conhecidos. Nem a palavra reciclagem, que parece haver surgido na linguagem jurídica ligada ao Direito ambiental. Na linguagem comum a reciclagem pode ter outros significados, como alteração da ciclagem, atualização pedagógica, repetição de uma operação sobre uma substância com o fim de melhorar propriedades, mas também pode significar tratamento de resíduos ou de material usado, de forma a possibilitar sua reutilização.
A demonstrar que a palavra reciclagem surgiu na linguagem jurídica ligada ao Direito Ambiental, Maria Helena Diniz registra:
?RECICLAGEM. Direito ambiental. Reaproveitamento de matéria-prima encontrada no lixo formando novos produtos.?
Roberto Tauil, discorrendo sobre a reciclagem, depois de transcrever duas definições que diz haver encontrado na Internet, assevera:
?Vamos entender por reciclagem o processo de transformação de produtos já utilizados, em novos produtos finais, ou que sirvam de matéria prima de um novo produto. Temos processos de reciclagem de:
- Papel, reciclando aparas ou rebargas de papéis, cartões, cartolinas e papelões;
- Plástico, ou termoplásticos, materiais que podem ser reprocessados várias vezes pelo mesmo ou por outro processo de transformação. Quando submetidos ao aquecimento a temperaturas adequadas, esses plásticos amolecem, fundem e podem ser novamente moldados. Como exemplos, podem ser citados: polietileno de baixa densidade (PEBD); Polietileno de alta densidade (PEAD); policloreto de vinila (PVC); poliestireno (PS); polipropileno (PP) politereftalato de etileno (PET); poliamidas (náilon) e muitos outros.
- Metais, classificados em dois grandes grupos: os ferrosos (compostos basicamente de ferro e aço) e os não ferrosos. Essa divisão justifica-se pela grande predominância do uso dos metais à base de ferro, principalmente o aço. Entre os metais não ferrosos, destacam-se o alumínio, o cobre e suas ligas (como latão e o bronze), o chumbo, o níquel e o zinco. Os dois últimos, junto com o cromo e o estanho, são mais empregados na forma de ligas com outros metais, ou como revestimento depositado sobre metais, como, por exemplo, o aço.
- Vidro, quando reutilizado como matéria-prima para a produção de novas embalagens. O vidro é 100% reciclável, não ocorrendo perda de material durante o processo de fusão. Para cada tonelada de caco de vidro limpo, obtém-se uma tonelada de vidro novo.?
É neste sentido, próprio do Direito Ambiental, que utilizamos neste pequeno estudo a palavra reciclagem, para designar o processo, qualquer que seja ele, pelo qual se obtém um produto a partir de lixo ou rejeito em geral.
3. RECICLAGEM DO LIXO E PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE
3.1. Defesa do meio ambiente como princípio constitucional
A importância que se nos dias atuais se sabe ter para toda a humanidade a proteção do meio ambiente torna desnecessária qualquer prescrição jurídica para que se possa considerar indispensável e por isto merecedora de todas as atenções e de todos os estímulos possíveis. Certamente por isto hoje constitui em nosso País um princípio constitucional.
Realmente, a vigente Constituição Federal estabelece que a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os princípios que indica, entre os quais está a ?defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação.?
A atividade de reciclagem do lixo, desde a desenvolvida pelos que o coletam em condições no mais das vezes desumanas, até os que o industrializam, viabilizando seu retorno à circulação econômica, é indiscutivelmente uma forma de defesa do meio ambiente e, portanto, está entre aquelas atividades que merecem tratamento diferenciado a título de incentivo.
3.2. Função extrafiscal do tributo
O Estado pode interferir na atividade econômica de três formas, a saber, por determinação, por participação e por indução. Sem questionarmos qual dessas três formas de intervenção é a mais adequada, e mesmo sem entrarmos na disputa sobre a questão de saber se deve realmente, ou não, praticar intervenções na atividade econômica por razões econômicas, consideramos que a intervenção estatal objetivando a defesa do meio ambiente é indispensável. Tanto do ponto de vista de nossa realidade, com abstração de nosso ordenamento jurídico e assim sem qualquer apelo a deveres deste decorrentes para o Estado, como do ponto de vista estritamente jurídico, temos como necessária a intervenção com o objetivo de defesa do meio ambiente.
A intervenção por indução é, a nosso ver, a menos traumática. Em outras palavras, é a forma de intervenção que menos agride a liberdade das pessoas. Com ela o Estado limita-se a tornar mais vantajosa a atividade que pretende estimular, e menos vantajosa a que pretende restringir. E o tributo é o melhor dos instrumentos dos quais o Estado pode dispor para esse fim.
Tributar é sempre uma forma de desestimular, mas como o tributo é necessário para suprir os cofres públicos dos recursos dos quais o Estado não pode prescindir, preconizam os defensores da não intervenção que ele seja igual, vale dizer, que ele não discrimine. Em outras palavras, que o tributo seja instituído e cobrado tendo em vista somente a capacidade contributiva de cada um. Entretanto, é inegável que o tributo pode e deve ser um instrumento para o estímulo daquelas atividades cujo incremento seja do interesse da coletividade. Atividades que o próprio Estado há de desempenhar para o bem de todos, como é o caso da coleta, remoção e tratamento do lixo, vale dizer, a limpeza pública, absolutamente indispensável à preservação de condições ambientais sem as quais a saúde pública não pode ser preservada.
Assim, é indiscutível a conveniência do uso do tributo como instrumento de estímulo às atividades de coleta, remoção e tratamento do lixo.
3.3. A reciclagem
Além da necessidade da limpeza pública, devemos considerar que a obtenção de muitos materiais ocorre com sérios prejuízos para o meio ambiente, como acontece com o papel, por exemplo, que é obtido com a derrubada de árvores utilizadas para a produção da celulose. Por outro lado, o rejeito de alguns produtos, como pneus, por exemplo, além da sujeira causam danos ao meio ambiente por serem de decomposição muito demorada, ou em outras palavras, por não serem biodegradáveis. Assim, nesse contexto surge a reciclagem como atividade duplamente merecedora de estímulos. Primeiro por livrar o meio ambiente dos rejeitos que lhe causam problema, pela sujeira e especialmente por serem resistentes à degradação natural. Segundo, por propiciar a obtenção de novos produtos a partir dos rejeitos, evitando a necessidade de exploração e a exaustão de recursos naturais.
Dúvida não pode haver, portanto, de que a reciclagem do lixo é uma atividade que está a merecer todos os estímulos possíveis. Não nos parece, porém, que esteja havendo em nosso País a preocupação com o uso do tributo como instrumento para propiciar esse estímulo. Pelo contrário, parece que tal atividade está sendo vista apenas como mais uma fonte para a arrecadação.
4. TRIBUTAÇÃO DA RECICLAGEM DO LIXO
4.1. Tributação e ecologia.
Quando afirmamos que a reciclagem do lixo deve ser estimulada estamos, sim, a dizer que sobre a mesma não deve ser cobrado tributo algum. Mas não estamos excluindo a possibilidade de um tributo sobre certas atividades com o objetivo de as desestimular, que poderá ser fonte de recursos apreciáveis. Precisamos conhecer melhor os efeitos das diversas atividades sobre o meio ambiente, para construirmos a ?fiscalidade ecológica? a que se reporta Molina, valendo-nos da colaboração dos que se dedicam ao estudo do meio ambiente. Não podemos deixar de utilizar esse excelente instrumento, que é o Direito Tributário, a serviço da preservação do meio ambiente. O enfoque interdisciplinar da tributação será sempre proveitoso, tanto no que diz respeito à elaboração de novas leis, como no que concerne à interpretação das já existentes.
Neste sentido é a lição autorizada de Herrera Molina:
?En definitiva, el estudio de la ?fiscalidad ecológica? tiene un caracter interdisciplinar interno y externo. En el plano externo, el jurista debe contar com la colaboración de otros estudiosos, preferentemente en el seno de equipos interdisciplinares de investigación. En el ámbito interno es preciso un doble esfuerzo: interpretar las normas tributarias en relacion com el problema ambiental que se intenta resolver, y com el resto de las normas confluyentes ? tarea más propia de los ?ambientalistas? ? e integrar en la doctrina general del Derecho tributario esas nuevas exigencais ambientales (Einbau der umweltpolitischen Belange in das Steuerrecht)?
4.2. Tributação da reciclagem como serviço
A reciclagem está entre os serviços de qualquer natureza, tributáveis pelos municípios, na lista que acompanha a Lei Complementar 116, de 31 de julho de 2003, que se reporta aos
?Serviços relativos a engenharia, arquitetura, geologia, urbanismo, construção civil, manutenção, limpeza, meio ambiente, saneamento e congêneres.?
E ainda, especificamente, a
?Varrição, coleta, remoção, incineração, tratamento, reciclagem, separação e destinação final de lixo, rejeitos e outros resíduos quaisquer.?
Resta-nos saber se a reciclagem é na verdade um serviço, ou se configura um processo de industrialização, posto que não pode a lei complementar, a pretexto de definir o âmbito de incidência de um imposto, ampliar a competência impositiva constitucionalmente atribuída a cada pessoa jurídica integrante da Federação. A propósito dessa atribuição de competência já escrevemos:
?É importante observarmos que nossa Constituição Federal delimita, com razoável precisão, a matéria fática de que se pode valer o legislador na instituição dos tributos. Em relação aos impostos, ela o faz ao partilhar as competências entre a União, aos Estados e Distrito Federal e aos Municípios. Ao atribuir a cada uma dessas entidades a respectiva competência para instituir impostos, a Constituição Federal delimita a matéria de que se pode valer o legislador de cada uma dessas pessoas jurídicas de Direito Público para instituí-los, vale dizer, para definir a hipótese de incidência de cada um desses impostos.?
E a respeito do âmbito constitucional de competência dos municípios para a instituição do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza, já escrevemos:
?O âmbito constitucional do ISS é o serviço de qualquer natureza. O servir enquanto fazer. Não o dar. Por isto, o legislador complementar não pode validamente incluir na ?Lista de Serviços? tributáveis pelos Municípios qualquer fato que não seja serviço, como fez com a lei Complementar n. 116/2003. Nem o legislador municipal pode incluir na definição da hipótese de incidência do ISS atividade outra que não seja serviço, como é o caso da locação de bens, do arrendamento mercantil ou leasing e da franquia ou franchising.?
Não nos parece que a reciclagem seja um serviço, no sentido em que essa palavra é utilizada na Constituição Federal para a atribuição de competência tributária aos Municípios. A reciclagem, a nosso ver, é atividade que tem como objeto um produto, um bem material que é reaproveitado para o desempenho de atividade econômica, e por isto mesmo, ao menos em princípio, não configura um servir, um fazer, capaz de comportar-se no conceito de serviço.
4.3. Distinção entre o produto e o serviço
Buscando estabelecer a distinção entre o âmbito de incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados, da competência da União, e o Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza, escrevemos:
?O critério essencial na distinção entre o âmbito de incidência do IPI e do ISS parece estar, isto sim, no objeto da atividade econômica que o compõe. No primeiro, esse objeto é um produto, enquanto no segundo esse objeto é um serviço. Importa-nos, portanto, distinguir o que se deve entender por produto, e o que se deve entender por serviço, no contexto do assunto aqui versado.
4.3. O produto e o serviço
A legislação do IPI, vista em todo o seu conjunto, leva-nos à idéia de que esse imposto incide sobre o produto da atividade de industrialização, que há de ser como tal considerado em razão do mercado, da atividade econômica, da oferta de bens a destinatários incertos com os quais o produtor ou industrial não mantém nenhum tipo de relação. Os produtos são colocados no mercado. São ofertados às pessoas em geral, tidas como consumidores em potencial. E a elas são vendidos. Ocorre sempre a entrega de uma coisa. Um bem corpóreo destinado a atender às necessidades ou aos desejos do consumidor. Há, no contrato de compra e venda, obrigação de dar e não obrigação de fazer, porque ao ser celebrado o contrato a coisa geralmente já existe, e mesmo quando ainda não exista não importa ao comprador a atividade de fazer, mas a coisa que lhe será dada em cumprimento do contrato.
Já a legislação do ISS, vista no seu conjunto, leva-nos à idéia de que ele incide sobre uma atividade. Atividade de servir, que pode ser ofertada no mercado mas nunca significará a oferta de coisa, e sim, sempre, a oferta de um fazer. A obrigação de quem contrata um serviço não é obrigação de dar, mas obrigação de fazer. A prestação do serviço, como atividade profissional, é precisamente o núcleo da hipótese de incidência do ISS. O IPI, assim como o ICMS concernente às operações relativas à circulação de mercadorias, dizem respeito à produção e à circulação de bens corpóreos, coisas, e as operações nas quais restam consubstanciados os respectivos fatos geradores, quando corporificadas em contratos, albergam obrigações de dar. Obrigações de entregar as mercadorias, sejam ou não produtos industrializados. Já o ISS tem como fato gerador a prestação de um serviço. Quando contratada, o contrato alberga obrigação de fazer. De prestar uma atividade que se destina a atender a necessidade da outra parte contratante.
Nas operações que dizem respeito aos produtos industrializados, quando contratadas, o contrato alberga obrigação de dar. O que afinal atende à necessidade do adquirente, credor dessa obrigação, é a coisa. Já nas prestações que dizem respeito aos serviços, quando contratadas, o contrato alberga obrigação de fazer. O que afinal atende à necessidade do tomador do serviço, credor dessa obrigação, é a atividade em si mesma.
4.4. Caracterização do produto e do serviço
Interessante é observarmos que afinal o que caracteriza a atividade como industrialização e, assim, como fato gerador do IPI, é a destinação do produto relativamente ao qual é desenvolvida. Se alguém realiza o conserto de um objeto de propriedade de seu usuário, sem que tal objeto se destine ao comércio, tem-se um serviço pura e simplesmente. Se, todavia, realiza o mesmo conserto de um objeto idêntico que se destine ao comércio, pode estar realizando uma operação de industrialização.
Observa-se que a Lista de Serviços que acompanhava a Lei Complementar nº 56, de 15 de dezembro de 1987, definia como serviços sujeitos ao ISS:
?71. Recauchutagem ou regeneração de pneus para o usuário final..?
?72. Recondicionamento, acondicionamento, pintura, beneficiamento, lavagem, secagem, tingimento, galvanoplastia, anodização, corte, recorte, polimento, plastificação e congêneres, de objetos não destinados à industrialização ou comercialização?
Já na Lista de Serviços que acompanha a Lei Complementar nº 116, de 31 de julho de 2003, a descrição daquelas atividades está feita nestes termos:
?14.04 ? Recauchutagem ou regeneração de pneus.?
?14.05 ? Restauração, recondicionamento, acondicionamento, pintura, beneficiamento, lavagem, secagem, tingimento, galvanoplastia, anodização, corte, recorte, polimento, plastificação, e congêneres, de objetos quaisquer.
Como se vê, a lista anterior indicava, de forma explícita, a condição essencial para a caracterização da atividade como um serviço. No item 71, o fato de ser a recauchutagem ou regeneração dos pneus executada para o usuário final. Da prestação envolvida não decorria o produto, vale dizer, o pneu, que já pertencia ao tomador do serviço. E no item 72 também a condição essencial para a caracterização do serviço está explicitamente indicada: de objetos não destinados à industrialização ou comercialização. Era coerente, assim, com o conceito de serviço, que a Constituição Federal utiliza para a atribuição da competência aos Municípios e com certeza não pode ser alterado pela Lei Complementar.
Já a lista atual omitiu a referência àquela condição essencial para a caracterização da atividade como serviço, talvez com o propósito de ampliar o conceito para alcançar as atividades descritas independentemente de se saber se a recauchutagem ou regeneração de pneus é feita para o usuário final, vale dizer, para quem já é proprietário dos pneus, ou para quem os vai comercializar. Ou se a galvanoplastia, por exemplo, é feita em objetos não destinados à industrialização ou comercialização. A nosso ver, porém, a referência à condição essencial para a caracterização do serviço está implícita, pois a Lei Complementar não pode alterar a Constituição para autorizar o Município a tributar o que na verdade não é serviço.
Assim, se uma empresa negocia com determinados produtos usados e os submete a conserto para em seguida colocá-los à venda, pode estar caracterizada a industrialização. Dizemos que pode, e não que está caracterizada a industrialização, porque elementos circunstanciais podem ser relevantes nessa caracterização, de sorte que não se pode afirmar que em todos os casos ela aconteça.
Seja como for, o que importa é a configuração, ou não do serviço. A Lei Complementar não pode definir como serviço o que a rigor serviço não é. Se o faz, é inconstitucional. Assim, a interpretação de itens como os acima transcritos (itens 14.4 e 14.5) da Lista de Serviços que acompanha a Lei Complementar nº 116/2003 deve ser feita de conformidade com a Constituição, vale dizer, considerando implícita a já referida condição para a caracterização dos serviços.
Por outro lado o conserto, a restauração e o recondicionamento de produtos usados, nos casos em que se destinem ao uso da própria empresa executora ou quando essas operações sejam executadas por encomenda dos próprios usuários de tais produtos, não caracterizam de nenhum modo industrialização, mas serviço.?
O raciocínio é válido também para a qualificação da reciclagem. Se feita em massa, relativamente a rejeitos que restam transformados em novos produtos destinados a atividade econômica, certamente não é um serviço. Resta-nos estudar a conseqüência desse entendimento no âmbito da tributação, especialmente para definirmos o tratamento a ser dispensado à reciclagem no que diz respeito aos impostos sobre produtos industrializados e sobre operações relativas à circulação de mercadorias. Admitindo-se que esses impostos incidem sobre a reciclagem, surge como aspecto da maior relevância a questão da não cumulatividade desses impostos.
5. NÃO CUMULATIVIDADE DO ICMS E DO IPI.
5.1. Princípio constitucional
A vigente Constituição Federal atribui aos Estados e ao Distrito Federal competência para instituírem imposto sobre ?operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicações, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior.? E estabelece que esse imposto ?será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou por outro Estado ou pelo Distrito Federal;? Atribui, outrossim, à União, competência para instituir imposto ?sobre produtos industrializados?. E diz que esse imposto ?será não cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores.?
Não há dúvida, pois, de que tanto em relação ao ICMS, como em relação ao IPI, nossa Constituição Federal alberga o princípio da não-cumulatividade. Em outras palavras, nossa Constituição garante que nenhum desses dois impostos incide mais de uma vez sobre a mesma mercadoria, ou produto. Em cada incidência, abate-se do valor que seria devido o montante já incidente nas operações anteriores.
5.2. Aplicação ao lixo reciclado
Li em jornal da capital cearense que ?enquanto está poluindo ? saindo dos carrinhos dos catadores e entrando nos depósitos dos atravessadores ? o lixo não recolhe ICMS; mas, imediatamente depois de transformado em um produto novo, industrializado, seu reciclador é obrigado a emitir uma nota fiscal de entrada com alíquota de 17%. Parece que alguém faz papel de bobo nessa questão.?
Mesmo examinando com freqüência e há muitos anos questões relacionadas ao ICMS, não nos tinha ocorrido ainda este interessante aspecto de sua não cumulatividade, que diz respeito ao lixo reciclado. Aspecto que pode suscitar sério questionamento em torno do alcance do princípio constitucional da não cumulatividade desse imposto, e em torno do tratamento favorecido que deve ser dispensado às atividades econômicas que colaboram na defesa do meio ambiente.
No mínimo, aos que reciclam o lixo utilizando-o como matéria prima em suas indústrias, em vez da cobrança do ICMS na condição de substituto dos catadores e atravessadores, quando da emissão de nota fiscal de entrada, aos que reciclam o lixo deve ser assegurado um crédito desse imposto, que corresponde ao que foi recolhido na anterior circulação econômica dos produtos em lixo transformados. A rigor, os que realizam essa atividade, indiscutivelmente benéfica ao meio ambiente, merecem tratamento tributário diferenciado, menos gravoso, como estímulo do Estado. De todo modo, enquanto esse tratamento mais adequado não vem, que pelo menos seja assegurado aos reciclam lixo o direito ao crédito de ICMS, que é uma simples decorrência do princípio da não cumulatividade.
5.3. O crédito do ICMS relativo a operações anteriores e a proteção do meio ambiente.
O industrial que realiza a reciclagem deve emitir nota fiscal de entrada do lixo que adquire de catadores ou atravessadores não regularmente estabelecidos. É a forma adequada para documentar a operação de aquisição dessa matéria prima. Não deve, porém, recolher ICMS como substituto do vendedor, porque o preço da aquisição certamente é menor do que o valor sobre o qual já foi recolhido o imposto em operações anteriores com a mercadoria ou produto agora adquirido como lixo. A nota fiscal de entrada servirá apenas para o controle fiscal dessas entradas, que ensejam crédito em favor do adquirente, do ICMS em relação ao lixo em geral e também do IPI em relação ao lixo derivado de produtos que tenham sido tributados pelo IPI nas operações anteriores.
A nosso ver não há dúvida de que o princípio da não-cumulatividade, tanto no que diz respeito ao ICMS como no que diz respeito ao IPI, aplica-se ao lixo reciclado para evitar que se sobreponha às incidências anteriores o ônus de nova incidência do mesmo imposto. Não existe, porém, nenhuma tese jurídica que não permita a construção, fundamentada, de tese oposta. Por isto mesmo é de capital importância o denominado efeito didático da jurisprudência, capaz de superar, ao menos no plano pragmático, as divergências. De todo modo, se alguém contestar a nossa tese, suscitando dúvida quanto ao alcance do princípio da não cumulatividade, essa dúvida há de ser resolvida pela aplicação de outro princípio constitucional também de enorme importância, que é o princípio da proteção ao meio ambiente.
5.4. O lixo reciclado e o IPI
Na legislação concernente ao Imposto sobre Produtos Industrializados temos o conceito de renovação, ou recondicionamento, que aplicado ao lixo muito se assemelha ao de reciclagem. A distinção nos parece residir apenas em que a renovação, ou recondicionamento, dizem respeito a determinado produto que segue sendo ele mesmo, renovado, enquanto a reciclagem pode ser a forma de obtenção de um produto novo.
A legislação do IPI considera industrialização, para os fins da incidência desse imposto, qualquer operação que modifique a natureza, o funcionamento, o acabamento, a apresentação ou a finalidade do produto, tal como a que, exercida sobre o produto usado ou parte remanescente de produto deteriorado ou inutilizado, renove ou restaure o produto para utilização. É possível, portanto, em princípio, considerar-se a reciclagem uma forma de industrialização, o que não significa dizer-se que deva submeter-se ao ônus tributário consistente na incidência, pura e simplesmente, do IPI sobre o produto reciclado.
Na verdade o que não se pode admitir é a incidência do ISS, como previsto na Lei Complementar 116/2003, porque este sim representaria um ônus tributário a mais, inteiramente injustificável. A consideração da reciclagem como uma forma de industrialização, diversamente, enseja a incidência do IPI na saída do produto reciclado, mas enseja o crédito desse imposto na aquisição do lixo que seja utilizado como sua matéria prima, calculado à alíquota prevista para o produto do qual constitui o rejeito, ou sobra, ainda que como simples embalagem. E nada impede que a lei estabeleça a incidência do imposto sobre o produto reciclado, com alíquota próxima de zero, de sorte a evitar completamente a ocorrência de ônus desse imposto sobre a atividade de reciclagem do lixo.